Igor Zenin |
Estremeço
com a perspectiva de uma visita tão cedo... E logo de quem!
Ainda estou
na cama. Espreguiço-me, alongando cada músculo e nervo contraído pela noite
fria...
Ela que espere.
O ‘seu (o
mesmo para ‘senhor) Senso’, como eu o chamo por ser sensato e sábio,
aconselhou-me que trocasse as fechaduras da porta. Assim ela não entra quando
quer. Tem de tocar a campainha.
Mas ela não
toca. Não mais. Não por educação, mas por receio. Sabe que não gosto. Agora ela
bate, com as pontas dos dedos, como se tamborilasse, delicadamente. Antes
ficava com os nós dos dedos brancos, depois avermelhados, de tanto insistir,
até que eu, cansada, abria.
Os passos
cessaram... Levanto da cama, vou até a janela e espio. É ela. Figura
desagradável, com seus olhos caídos como os cantos de sua boca, os vincos
aumentados. Não seria feia, se não fosse seu jeito.
Desta vez,
nem se atreve a bater. Eu finjo que não sei que ela está aí. Finjo que não
estou. Viajei. Saí cedo e não voltei.
Não abro as
persianas. Espero que ela desista e vá embora.
Não desiste. Ouço os passos
arrastados, esmagando as folhas de plátano em frente à janela.
Igor Zenin |
Igor Zenin |
Eu me
escondo. Ela espia pelas frestas... ansiosa.
Ai, meu Deus!
Não posso ficar assim a manhã e a tarde toda, quem sabe. Sei o quanto ela pode
ser persistente.
Um leve
tamborilar. Ela ‘sabe’ que estou em casa. Deve ter ouvido minha respiração encurtada
pela ansiedade, ou o suspiro que não pude evitar quando percebi sua presença do
lado de fora.
Se eu
deixá-la entrar, sei que não irá tão cedo. Não estou com paciência para ouvi-la
queixar-se. Conheço suas histórias de cor e salteado. Histórias sobre perdas:
de afetos, de gente que já se foi, de coisas materiais, de oportunidades, de
esperança, de saúde. Conheço-as bem porque eu as vivi. E menos disposição tenho
para sentir sua mágoa que, depois que ela vai embora, sinto-a ainda grudada a
minha pele, entranhada em
mim. Pois contamina.
E, depois,
ela fala, fala, sempre do que já ficou para trás. Fala de mim mesma, de minha
infância solitária, reaviva sentimentos e fatos que eu nem lembrava mais. Ela
me conhece desde pequena. Parece gostar de mim, mas não gosta. Precisa de mim
para poder existir. Alimenta-se de dor e de lembranças. Por falar nisto, ela
está mais magra. Não tenho lhe oferecido nada para comer.
Penalizada,
estou quase deixando-a entrar. Um café com bolinhos quem sabe, e ela se
satisfaz e vai embora.
Não vai. Eu a
conheço.
Pelas frestas fiapos de luz dourada passam
para o interior de minha casa.
O sol convida
a abrir as janelas. Pede um passeio lá fora.
Cansei. Vou
vestir-me, sair, enfrentá-la. Se pedir para entrar, pois ‘precisa’ tanto falar
comigo, delicada, mas com firmeza, direi que não, que vou passear simplesmente,
sem inventar desculpas de que tenho hora marcada, que não pode ser adiada, em
algum lugar.
Inadiável
mesmo é a minha felicidade.
Faço isto e
não me constranjo de coar o café e deixar que seu aroma se espalhe pela casa e
alcance a figura triste lá fora.
Abro a porta.
Ela tenta tocar-me. Não consegue. Seus dedos não atravessam a dimensão em que naquele
instante habito. Não precisei
afastá-la. Ela entendeu. Não faz mais parte de minha história, que começa
agora.
Ela se
afasta...
Ela: a
Tristeza.
E eu saio
para a rua ensolarada.
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