segunda-feira, 9 de julho de 2012

VISITAÇÃO



Igor Zenin

      A primeira coisa que ouço é seu passo arrastado, pesado.
     Estremeço com a perspectiva de uma visita tão cedo... E logo de quem!
     Ainda estou na cama. Espreguiço-me, alongando cada músculo e nervo contraído pela noite fria...
    Ela que espere.
    O ‘seu (o mesmo para ‘senhor) Senso’, como eu o chamo por ser sensato e sábio, aconselhou-me que trocasse as fechaduras da porta. Assim ela não entra quando quer. Tem de tocar a campainha.
    Mas ela não toca. Não mais. Não por educação, mas por receio. Sabe que não gosto. Agora ela bate, com as pontas dos dedos, como se tamborilasse, delicadamente. Antes ficava com os nós dos dedos brancos, depois avermelhados, de tanto insistir, até que eu, cansada, abria.
   Os passos cessaram... Levanto da cama, vou até a janela e espio. É ela. Figura desagradável, com seus olhos caídos como os cantos de sua boca, os vincos aumentados. Não seria feia, se não fosse seu jeito.
   Desta vez, nem se atreve a bater. Eu finjo que não sei que ela está aí. Finjo que não estou. Viajei. Saí cedo e não voltei. 
   Não abro as persianas. Espero que ela desista e vá embora.            
   Não desiste. Ouço os passos arrastados, esmagando as folhas de plátano em frente à janela.
Igor Zenin
Igor Zenin
   Eu me escondo. Ela espia pelas frestas... ansiosa.
   Ai, meu Deus! Não posso ficar assim a manhã e a tarde toda, quem sabe. Sei o quanto ela pode ser persistente.
   Um leve tamborilar. Ela ‘sabe’ que estou em casa. Deve ter ouvido minha respiração encurtada pela ansiedade, ou o suspiro que não pude evitar quando percebi sua presença do lado de fora.
   Se eu deixá-la entrar, sei que não irá tão cedo. Não estou com paciência para ouvi-la queixar-se. Conheço suas histórias de cor e salteado. Histórias sobre perdas: de afetos, de gente que já se foi, de coisas materiais, de oportunidades, de esperança, de saúde. Conheço-as bem porque eu as vivi. E menos disposição tenho para sentir sua mágoa que, depois que ela vai embora, sinto-a ainda grudada a minha pele, entranhada em mim. Pois contamina.
   E, depois, ela fala, fala, sempre do que já ficou para trás. Fala de mim mesma, de minha infância solitária, reaviva sentimentos e fatos que eu nem lembrava mais. Ela me conhece desde pequena. Parece gostar de mim, mas não gosta. Precisa de mim para poder existir. Alimenta-se de dor e de lembranças. Por falar nisto, ela está mais magra. Não tenho lhe oferecido nada para comer.
   Penalizada, estou quase deixando-a entrar. Um café com bolinhos quem sabe, e ela se satisfaz e vai embora.
   Não vai. Eu a conheço.
   Pelas frestas fiapos de luz dourada passam para o interior de minha casa.
   O sol convida a abrir as janelas. Pede um passeio lá fora.
   Cansei. Vou vestir-me, sair, enfrentá-la. Se pedir para entrar, pois ‘precisa’ tanto falar comigo, delicada, mas com firmeza, direi que não, que vou passear simplesmente, sem inventar desculpas de que tenho hora marcada, que não pode ser adiada, em algum lugar.
   Inadiável mesmo é a minha felicidade.
   Faço isto e não me constranjo de coar o café e deixar que seu aroma se espalhe pela casa e alcance a figura triste lá fora.
   Abro a porta. Ela tenta tocar-me. Não consegue. Seus dedos não atravessam a dimensão em que naquele instante habito.    Não precisei afastá-la. Ela entendeu. Não faz mais parte de minha história, que começa agora.
   Ela se afasta...
   Ela: a Tristeza.
   E eu saio para a rua ensolarada.
    




Igor Zenin


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