Ontem o tempo se desenrolou tão lentamente, como se
desdobrado por velhas mãos cansadas.
Fui dormir, grata pelo sono que não se deixou esperar.
Veio logo, fosse o que fosse que me perturbasse. É uma bênção, que ainda me é
concedida aos sessenta e seis anos, adormecer tão facilmente.
Não lembro dos sonhos. Entrecortados, não lineares, um quebra-cabeças cujas peças não se encaixam ou ficam faltando, que desisti de interpretar ou montar. Sei apenas que, neles, há sempre uma casa, não a mesma em
todos eles, mas uma casa, com muitos corredores, onde me perco ou procuro alguém de quem me perdi.
Acordei, ou foi o que pensei... Sem esforço nenhum, sentei- me na cama.
Surpreendi-me com a leveza de meu corpo. Onde eu estava? Quem acordara em mim?
Com certeza não era a mulher de sessenta e seis anos de agora.
Aquela que me olhava, de dentro de um espelho oval, com estranheza, não tinha muito mais que seis anos, talvez
sete.
Levantei. Andei pela casa, que logo reconheci como a de
minha infância, descalça, o piso de tábuas enceradas rangendo sob meus pés.
Uma mulher, minha mãe, bem mais moça, mas de olhos cansados e azuis, atarefada, olhou-me, o olhar crítico e, num tom de voz impaciente, reclamou de alguma coisa, provavelmente de eu estar escabelada e descalça. Largou o que fazia e voltou decidida a 'ajeitar'os meus cabelos ‘espequeados’, que ela se esforçava para manter lourinhos com chá de marcella.
Estremeci. Sabia que a sessão de trançá-los seguida
de choro não se faria esperar. Meu desejo de ficar bonita era mil vezes menor
que a capacidade de suportar qualquer dor e desconforto.
E mais tarde teria de aguentar, para meu tormento, os
sapatos de verniz que faziam bolhas nos pés. Sempre havia as delatoras bem
intencionadas, que vendo-me a correr toda arrumadinha, mas descalça, avisavam
prestimosamente: “Sua guriazinha está sem sapatos.” Minha mãe dizia,
repetidamente que meus pés ficariam grandes como lanchas. Eu nem sabia o que
era uma lancha. Ficaram. Mas proporcionais a minha altura, eu acho. Pois nunca mais parei de crescer... até onde lembro.
Minha mãe. A que estava decidida a me deixar bonita e não desistiria de seu intento, enquanto pudesse, moldava meu cabelo em tranças tão firmes que me fazia pensar que me deixaria careca e com os olhos ‘puxadinhos’ como os das meninas chinesas. Não fiquei careca, nem com olhinhos orientais... Meus cabelos, de ralos que eram, ganharam volume e meus olhos continuaram
redondinhos e cheios de lágrimas.
Minha mãe. A que me comprava sapatos de verniz, bonitinhos, mas
duros e inflexíveis, que eu ‘acalcanhava’ e me faziam mancar.
Minha mãe. A que não aceitava que minhas notas não estivessem entre as melhores. Coisa quase impossível para mim, principalmente no que se relacionava a números.
Minha mãe. A que lia minhas
cartinhas do dia das mães, chorando, mas constrangida, pois não queria dar ‘o
braço a torcer’. E a quem eu não desistia de tentar comover.
Minha mãe... que não faltava à visita ao cemitério, onde, bem
na entrada, estava o túmulo de meu pai. Enquanto ela limpava e arrumava as
flores, chorando sempre, vestida em tons de preto e cinza, que envelheciam seus
rosto ainda bonito, mas sem vaidades, eu corria entre as lápides, muito
contente, fingindo que eram ‘caminhas’. Eu gostava das pequenas, com grades
brancas de madeira. Não pensava no que significavam. A morte nem me passava
pela cabeça.
Mas também havia a mãe que me alcançava bem cedinho
uma mamadeirona com uma chupeta esquisita, que já não existe mais por aí, de
borracha e que se adaptava ao gargalo da garrafa de vidro, talvez de um refrigerante, coisa rara na época, não
descartável, remanescente de alguma
festa de aniversário.
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páscoa: lembro que foi ótima. |
E a mãe que fazia ninhos com caixas de sapato, enfeitadas com
papel colorido, recortado em franjas, que eu ajudava a preparar, e que
escondia para que eu os encontrasse de manhã bem cedo.
E que comprou para mim um piano, embora eu tivesse pedido uma 'gaita', porque uma amiga tinha e eu achava 'a coisa mais linda saber tocar um instrumento que eu pudesse carregar.'
Afinal, piano era um instrumento mais elegante. Diziam meus irmãos. E era bem melhor do que a gaita de boca que ganhara no natal anterior, quando não ficou claro que tipo de gaita eu desejava.
E que me deu, para minha felicidade, um par de tamanquinhos de madeira para andar pelas ruas sem calçamento e embarradas, depois da chuva, e umas 'alparcatas' macias, de lona e corda, para andar em casa.
E que mandou montar uma pracinha
de brinquedos para mim, quando completei sete anos.
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eu, á direita, com minha prima querida, Tânia, à esquerda |
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Nós duas: Tânia, muito séria, e eu, para variar, de boca aberta. |
E também a mãe que montava uma árvore enorme, feita de galhos de pinheiro de verdade. Os enfeites, sempre os mesmos, pois nada era descartável para minha mãe, eram pendurados com cuidado, num ritual demorado e dolorido, pois invariavelmente eu ficava com os dedos picados pelos espinhos.
Os presentes não eram muitos, mas tudo era transformado em presente, até uma barra de chocolate, ou um estojo de lápis de cor, uma escova nova de dentes ou um livro de histórias, que eu amava demais. E a invariável boneca de louça. Este era o ponto alto da comemoração.
Mas eu gostava mesmo da oração feita, menos por convicção, mais por respeito a uma tradição que, para minha sorte, se prolongou para sempre. A oração entrava no coração, como o leite morno e doce da garrafa-mamadeira ao amanhecer. Infundia em minha alma pequena uma certeza de um amor-alimento que me nutria e preenchia.
O tempo passou. Como um tapete tecido de cores vivas e
inevitáveis sombras.
Rápido demais, pois ainda sonho com a magia dos seis
anos, quando conseguia dançar entre as maria-moles,
fazendo de conta que eram ‘violetas imperiais’; quando corria entre as lapides
e túmulos, fazendo de conta que a vida era para sempre e a morte não existia,
pelo menos ali.
O tempo passou.
Acordei hoje do sonho dentro de um outro sonho, com
sessenta anos a mais, mas com seis anos na alma e com saudades de mim e dela,
de minha mãe, e de antigos e maravilhosos natais.